Ex-aluna da Escola de Artes e Ofícios, trabalha há 16 anos em importante patrimônio histórico de Fortaleza que ajudou a restaurar
O ano era 1998 quando Georgia Viana, na época com 12 anos, veio com a mãe, a avó, irmãos e sobrinhas do município de Pentecoste para Fortaleza. A intenção, como toda família retirante, era buscar oportunidades de estudo e trabalho para os(as) filhos(as). Logo que chegaram na capital, encontraram morada no Bom Jardim, bairro onde Georgia vive até hoje. Sem a presença do pai, que havia deixando a família quando ela tinha apenas um ano de vida, o sustento era garantido principalmente por duas irmãs que trabalhavam como empregadas domésticas.
Alguns anos após a mudança para Fortaleza, Georgia concluiu o ensino médio. Foi quando passou a conviver, como todo jovem que termina a vida escolar, com um caldeirão de incertezas sobre seu futuro. Sonhos não lhe faltavam, bem diferente das oportunidades que não costumam ser tão abundantes para uma jovem moradora da periferia de Fortaleza. O caminho considerado natural para muitos talvez fosse aceitar conviver com estigmas sociais e trabalhar em casa de família. Mas o futuro – aliado ao desejo de construir uma história diferente – reservava outros rumos para Georgia.
Em 2005 conheceu a Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho (EAOTPS), equipamento público da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult), gerido em parceria com o Instituto Dragão do Mar (IDM). Lá, foi aprovada em uma seleção para um curso de Conservação e Restauro do Patrimônio. A formação de aproximadamente um ano a ajudou a desenvolver um novo olhar sobre a cidade onde morava. “Comecei a ver o Centro da Cidade, as edificações históricas, por onde costumava passar, de outra forma”, exemplifica. Uma maior consciência crítica sobre patrimônio também ajudou a definir seu caminho: “a Escola mudou completamente a minha vida e a minha visão. Quando eu saí do ensino médio não sabia o que ia fazer. Foi a Escola que me deu o empurrão e abriu meus olhos”, recorda.
A partir do curso feito na Escola, Georgia iniciou uma trajetória voltada à área do patrimônio. Durante a formação, participou da equipe de alunos(as) que em 2005 e 2006 ajudou a restaurar o Sobrado José Lourenço, edificação construída na segunda metade do século XIX, no Centro de Fortaleza. Considerado um dos primeiros prédios de alvenaria de três andares erguido no Ceará, o Sobrado foi residência e consultório do médico sanitarista Dr. José Lourenço de Castro Silva (1808-1874), abrigando posteriormente oficina de marcenaria, repartição pública e bordel. O local foi tombado pela Secult e, após o restauro, tornou-se um importante equipamento cultural voltado às artes visuais.
O trabalho de restauro do Sobrado foi dividido em três equipes: alvenaria, marcenaria e pintura. Georgia escolheu ficar nesta última equipe, por uma aptidão que tinha desde a adolescência em trabalhar com desenho e artes. Foi assim que ajudou a descobrir e restaurar pinturas artísticas que estavam ocultas nas paredes do Sobrado e que hoje podem ser apreciadas pelos visitantes do equipamento.
O sentimento de orgulho em ter contribuído para entregar de volta à cidade um patrimônio histórico a fez criar um elo com o Sobrado que já dura 16 anos. Isso porque, pouco tempo após ter concluído o restauro, Georgia foi convidada a trabalhar no equipamento como estagiária, na recepção, ajudando a mediar as visitas guiadas. A dedicação e o desejo de se aprimorar na área de patrimônio a fizeram ingressar e concluir a faculdade de História. Aos poucos foi assumindo novas funções no equipamento até se tornar produtora cultural do Sobrado, onde hoje ministra oficinas, realiza montagens de exposições e cuida da conservação do acervo do espaço. “Fico feliz por trabalhar em um local que restaurei e posso ajudar a manter conservado. Como toda restauradora, tenho o desejo de mostrar ao público a história do Sobrado. Isso não tem preço”, ressalta.
A adolescente, oriunda de uma família de retirantes, moradora de um bairro periférico, tornou-se mãe e sente orgulho em dizer que está conquistando sua independência e vencendo estigmas sociais, trilhando um caminho que escolheu pra si: “eu fico muito orgulhosa de mim mesma. Eu consegui fazer minha trajetória por mim mesma. E a Escola de Artes e Ofícios foi um ponto chave, ajudou a me afirmar e a não ter vergonha de quem eu sou e a ter orgulho das minhas raízes”, afirma.
A trajetória de Georgia e o desejo de fortalecer a luta em defesa do patrimônio são acompanhados de um senso crítico que a faz cobrar de governantes e da iniciativa privada mais investimentos no setor de conservação e restauro. Defende, em especial, mudanças do currículo escolar, para que outras pessoas possam ser sensibilizadas a valorizar a nossa memória e história: “o ensino médio não trata da questão do patrimônio com profundidade. Não ensina a dar o valor a nossa história. E é importante preservar e passar para outras gerações a importância do passado. É preciso ter incentivo desde pequeno a olhar com carinho para os nossos patrimônios. Somente assim, vamos valorizá-los”.